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As subjetividades por detrás das objetividades

Em muitos momentos de nossas vidas, somos obrigados a passar por processos seletivos. Esses processos podem ser dos mais variados tipos, como para ingressar em um curso técnico, para ingressar em uma universidade, para conseguir um estágio, um emprego, uma promoção, uma bolsa de estudos, uma vaga em alguma turma de uma dada disciplina… e por aí vai.

São muitos os porquês de se passar por tais processos, e nem sempre há o que fazer para contorná-los. Dependendo de sua área e de seus objetivos, pode ser que você conviva com tais processos pelo resto de sua vida profissional, ainda que os papéis se invertam e você, eventualmente, atue como aplicador (ou avaliador) dos processos seletivos em vez de atuar como candidato. Ainda assim, você provavelmente terá múltiplas experiências com tais processos. Ao longo de tantas experiências, você notará que existem diversos pontos dignos de crítica em tais processos. Dentre eles, os critérios adotados, as métricas adotadas para mensurar tais critérios, a transparência na condução de cada etapa, e a dependência de certo grau de confiança nos responsáveis pela organização, pela aplicação e pela avaliação de tais processos.

Caso você se meta a questionar os responsáveis por tais processos, você perceberá rapidamente que, para se defenderem — e, também, defenderem o processo em questão — , é comum o uso do argumento de que se trata de um processo baseado em critérios objetivos. Quase sempre, na cabeça de quem usa tal afirmação, utilizar um critério objetivo é algo necessariamente positivo, enquanto utilizar um critério subjetivo é necessariamente negativo; uma visão que poderíamos qualificar como um caso de falácia da falsa dicotomia.

Critérios objetivos seriam aqueles que independem de opiniões, pontos de vista e interpretações; eles, pura e simplesmente, exibem um valor que pode ser lido de acordo com uma dada escala e, assim, permitem que se avalie comparativamente quem é mais que quem, ou quem é menos que quem, ou mesmo quem simplesmente está abaixo ou acima de um dado limiar. Já os critérios subjetivos, por sua vez, dependeriam de interpretações e avaliações que poderiam considerar todo um amplo leque de questões para, só então, mensurar, a partir de algum ponto de vista, o quão melhor ou pior é o indivíduo que estiver sendo avaliado, seja em relação aos demais, seja em relação a alguma outra referência.

No mundo das ideias, a adoção de critérios objetivos faz com que um processo dê um passo na direção de ser — digamos assim — mais honesto, porque, supostamente, tal processo sofreria menos influência por parte dos envolvidos em sua organização, aplicação ou avaliação. Mas há dois graves problemas no uso de critérios objetivos: 1) a inflexibilidade de uma avaliação baseada em métricas exageradamente simples e que, portanto, naturalmente, tende a cometer injustiças; 2) a falsa ideia de que inexistem subjetividades por detrás das métricas de avaliação utilizadas para as tomadas de decisão.

Eu compreendo alguns dos bons argumentos que levam as pessoas a acreditar que os critérios objetivos seriam uma boa solução. Sabemos que o ser humano pode ser corrompido, que pode agir de má fé, que pode agir com base em interesses próprios, que pode agir com base em visões éticas e morais bastante duvidosas. A ideia de utilizar critérios que, a partir de certas métricas, entregarão um número final, a partir do qual, utilizando-se de uma determinada escala ou de um determinado limiar, seria possível tomar a decisão, sem dúvida, parece ser tentadora. A impressão que dá, logo de cara, é a de que o problema foi resolvido; porém, infelizmente, não é bem assim.

Apesar de a objetividade aparentar ser a solução para os problemas associados a possíveis comportamentos humanos negativos, existem muitos pontos a serem considerados aqui, porque a objetividade, dependendo do assunto em questão, é algo meramente utópico. Critérios, ainda que objetivos, existem aos montes, e os critérios, por si só, não são suficientes; é preciso definir quais serão as métricas que permitirão calcular, estimar ou mensurar os valores que entregarão a informação almejada para os critérios adotados. O critério dá apenas uma ideia sobre o que se espera avaliar, mas é a métrica que te permite chegar a algum valor que, supostamente, é interpretado como uma das formas de se avaliar aquele critério.

Por exemplo, se o seu critério para atribuir a bolsa a um determinado aluno é escolher o “aluno mais pobre”, pode parecer fácil e óbvia a forma de se mensurar esse critério, mas não é. Quais seriam as métricas utilizadas para isso em sua opinião? Renda familiar per capita? Saldo bancário? Valor da última declaração de imposto do chefe da família? Note que cada uma das métricas sugeridas é objetiva, mas todas elas, ainda que utilizadas concomitantemente, deixam algo importante de fora, e sempre há casos em que se poderia “driblar” tais métricas, mesmo com tudo sendo feito de forma lícita e transparente.

Caso prefira pensar em outro exemplo, imagine, então, o critério “melhor aluno”; ou, se preferir deixar com mais “cara” de critério objetivo, “aluno com melhor desempenho acadêmico”. Neste caso, você utilizará quais métricas? Média das notas do semestre anterior? Média de todas as notas até então? Média das notas das disciplinas relacionadas à área para a qual processo seletivo está sendo feito? Número de faltas do aluno? Percentual de atividades cujas notas estiveram acima de um determinado limiar? Número de disciplinas aprovadas até então? Taxa de aproveitamento (número de disciplinas aprovadas dividido pelo número de disciplinas cursadas) até então?

O mesmo problema se repete no caso anterior. Mesmo com métricas objetivas, sempre haverá uma enormidade de casos injustiçados pela forma como são calculadas tais métricas e, mais do que isso, o problema se inicia com o fato de existir uma infinidade de métricas que poderiam ser utilizadas para mensurar os critérios adotados, mas sempre são adotadas apenas algumas métricas, e a própria escolha de quais métricas serão utilizadas é, em si mesma, um processo de subjetivação, porque tal escolha sempre é subjetiva.

Alguém (ou algum grupo de pessoas) precisou dizer que as métricas X e Y serão utilizadas, mas todas as demais não serão. Alguém escolheu utilizar duas métricas em vez de uma, três, quatro… e isso já é uma escolha que envolve certas subjetividades; e, da mesma maneira, mesmo após definirem que seriam utilizadas duas métricas, poderiam ter escolhido J e K, ou M e N, ou Z e W, ou até H e Q, mas escolheram X e Y, o que também envolve subjetividades na escolha.

Ainda que digam que só escolheram duas métricas porque foram assim ordenados, isso apenas significaria que a subjetividade referente a essa parcela da questão partiu de instâncias superiores; mesmo que tenha sido por uma limitação de um sistema utilizado, o sistema poderia ter sido trocado por um que permitisse mais métricas, mas optaram por prosseguir com este, e isso é uma decisão que envolve subjetividades. Algo similar ocorre quanto à escolha das métricas, porque, mesmo que digam que foram X e Y que permitiriam fazer a escolha com a menor taxa de erros, a própria escolha de se utilizar uma avaliação baseada em taxa de erros já traz mais subjetividades, e muitas outras métricas que também poderiam ter sido consideradas e que trariam um olhar importante, infelizmente, foram deixadas de lado, fazendo com que fatores de grande relevância passassem a ser ignorados.

Os únicos dois trunfos da objetividade (utópica) são: 1) (suposta) imparcialidade na avaliação; e 2) maior velocidade no processo. Não há como confiar nessa suposta imparcialidade alegada por quem defende essa “beleza” dos critérios objetivos, pois há muitas subjetividades por detrás que fazem com que essa suposta objetividade seja apenas para inglês ver. Alguém usou critérios subjetivos para escolher os critérios de avaliação, depois utilizou critérios subjetivos para selecionar quais seriam as métricas de mensuração de cada critério, além de, também, ter elaborado um conjunto de regras de participação no processo, que sempre são subjetivas.

Mesmo com tantas subjetividades envolvidas, realmente podemos dizer que existem processos que são verdadeiramente objetivos? Será que existe mesmo essa “pureza” toda nessas supostas objetividades? Ou será que essas supostas objetividades são mais utilizadas como uma mera forma de se blindarem de críticas por fazerem parecer que “não foi pessoal” a escolha deste em vez daquele? A bem da verdade, nada disso acaba importando muito no fim; acho apenas que haveria maior grau de honestidade envolvido se os responsáveis por tais processos deixassem de lado a ilusão de seu processo seletivo ser tão “puro” e imparcial, pois existem diversas parcialidades aqui e ali. O processo seletivo deles é assim porque eles querem que seja assim, e não porque, supostamente, esse é o melhor modo de se selecionar alguém. Simples assim.

E é claro que os processos seletivos foram explorados aqui apenas como uma roupagem para abordar essa questão, mas ela não se aplica somente a esses cenários. Onde quer que aleguem que estejam utilizando critérios objetivos para tomar decisões, sempre haverá quem pense que isso implica algum grau de pureza e imparcialidade à decisão, mesmo sendo mera ilusão, porque sempre haverá um leque enorme de subjetividades por detrás que precisariam ser muito bem camufladas ou ignoradas.